domingo, 17 de fevereiro de 2008

Atenção aos Recreios(1)

Por lei há dois professores nomeados para vigiar o recreio. Através das crianças e de alguns docentes soubemos que isso era só lei e não prática corrente. Este depoimento e o seguinte baseiam-se em histórias verídicas, numa escola do 1º ciclo do ensino básico investigadas por uma monitora de ATL, a pedido da Associação de Pais. No momento de agir muitos foram os que se acobardaram e a história não teve o impacto que deveria ter, fica aqui o relato, a título de alerta, é o mínimo que posso fazer. Os nomes são fictícios para proteger a identidade dos intervenientes, os factos, esses remontam a alguns anos atrás, se a memória não me falha, antes ainda do Escândalo Casa Pia ter rebentado. Em última análise todos somos culpados de situações como esta. Sempre que remexo o baú das recordações e releio estes depoimentos, sinto arrepios e partilho do sentimento de impotência sentido pela autora.

João brincava com uns carrinhos no recreio da Escola. Três colegas chamaram o João: "- João vem cá." Ele foi. Enquanto o cercavam disseram-lhe: " - Vais chupar na pila do Luís." O João respondeu não e tentou fugir quando um deles de estatura e físico superiores ao seu o agarrou pela cintura, obrigando-o a dobrar-se e pressionando-lhe a cabeça para baixo. Obrigando-o assim, a introduzir o pénis do colega que entretanto se despira, na sua boca. O João tentou escapar, não conseguiu. O João mordeu o Luís. Foi quando lhe bateram e ele conseguiu escapar ao cerco.

Durante dias o João em casa nada disse, estava ameaçado por eles. Nos dias posteriores que se traduziram em meses o João foi diversas vezes batido por esses colegas, chegando inclusive a desmaiar.

Em casa continuava a nada se saber.

Na Escola já corriam boatos. As agressões ao João não foram comunicadas aos Pais.

Um dia o João, depois de um longo silêncio, não aguentou mais e contou ao irmão que posteriormente avisou a Mãe.

O João não queria ir mais à Escola. Foi tudo comunicado à Directora da Escola de então e pelos seus Pais o caso foi enviado à DREL, onde informaram a Mãe do João que tinha sido aberto um inquérito para apurar responsabilidades.

O João mudou de Escola a meio do ano. O João terminou pelo menos o pesadelo de ali estar, naquela Escola, onde foi maltratado.

O João é só uma criança que um dia foi para a Escola para aprender coisas e crescer mais e melhor.

Sobre o João posso acrescentar que pertenceu ao grupo de crianças dos Tempos Livres, do qual fui monitora. Via muitas vezes no João comportamentos violentos e atitudes de revolta que oscilavam com atitudes de carinho e ternura.

Notei no comportamento do João também, situações como a de chegar a uma janela da sala e dizer que se ia matar.

Era evidente que estava em sofrimento. Rasgava os trabalhos dos colegas e os seus, magoava-se propositadamente e testava os seus próprios níveis de dor no seu corpo, através de pequenas mutilações, como por exemplo espetar o lápis no dedo ou na sua mão, muitas vezes a sorrir e a chorar ao mesmo tempo. Tudo isto foi comunicado à Mãe da criança, à coordenadora de então dos Tempos Livres e à Directora da Escola. Sei que o João foi consultado pela Psicóloga da Escola que referiu que ele estava bem, não se encontrava afectado pelo que aconteceu e que era uma criança que necessitava de regras. Foi este o comentário que a Professora fez comigo. Professora essa que sempre se mostrou interessada com este caso.

Resta-me concluir que não sei o que afecta uma criança, pois se os comportamentos dela não são referência do seu estado, então o que é?

Senti-me impotente para resolver a situação pois não só não era da minha competência escolar como tudo leva um tempo a ser investigado, tratado, resolvido, creio eu. Pois pensei acontecer assim com este caso.

O João mudou de Escola.

Não me encontro em condições de tecer comentários sustentados à actuação dos diferentes intervenientes neste caso, visto não ter acesso nem em meu poder, os documentos necessários a isso, sei todavia e pelo medo (de agressões) que ainda hoje se sente entre as crianças desta Escola que o que se fez não foi suficiente e que o silêncio não apaga nem resolve estes erros de acção.

Trabalhamos com crianças e isso dá-nos responsabilidade de saber apurar a competência ao receber ao nosso cuidado o valor de uma vida, a deles, destes meninos, destas escolas, onde somos todos responsáveis.

Onde o silêncio é a trave da incompetência.

Não tenho soluções, mas sei que assim não é maneira de se fazer.

Ao João.

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