domingo, 17 de fevereiro de 2008

Saberemos cada vez menos o que é um ser humano

"Era uma vez, no antigo país das fábulas, uma família em que havia um pai, uma mãe, um avô que era pai do pai e aquela já mencionada criança de oito anos, um rapazinho. Ora sucedia que o avô já tinha muita idade, por isso tremiam-lhe as mãos e deixava cair a comida da boca quando estava à mesa, o que causava grande irritação ao filho e à nora, sempre a dizerem-lhe que tivesse cuidado com o que fazia, mas o probre velho, por mais que quisesse, não conseguia conter as tremuras, pior ainda se lhe ralhavam, e o resultado era estar sempre a sujar a toalha ou a deixar cair comida para o chão, para já não falar do guardanapo que lhe atavam ao pescoço e que era preciso mudar-lhe três vezes ao dia, ao almoço ao jantar e à ceia. Estavam as coisas neste pé e sem nenhuma expectativa de melhora quando o filho resolveu acabar com a desagradável situação. Apareceu em casa com uma tigela de madeira e disse ao pai, A partir de hoje passará a comer daqui, senta-se na soleira da porta porque é mais fácil de limpar e assim já a sua nora não terá de preocupar-se com tantas toalhas e tantos guardanapos sujos. E assim foi. Almoço, jantar e ceia, o velho sentado sózinho na soleira da porta, levando a comida à boca conforme lhe era possível, metade perdia-se no caminho, uma parte de outra parte escorria-lhe pelo queixo abaixo, não era muito o que descia finalmente pelo que o vulgo chama canal da sopa. Ao neto parecia não lhe importar o feio tratamento que estavam a dar ao avô, olhava-o, depois olhava o pai e a mãe, e continuava a comer como se nada tivesse a ver com o caso. Até que uma tarde,ao regressar do trabalho, o pai viu o filho a trabalhar com uma navalha um pedaço de madeira e julgou que, como era normal e corrente nessas épocas remotas, estivesse a construir um brinquedo com as suas próprias mãos.....Não ouviste, que estás a fazer ......e o filho sem levantar a vista da operação, respondeu, Estou a fazer uma tijela para quando o pai for velho e lhe tremerem as mãos......Foram palavras santas....."
in "As intermitências da Morte" José Saramago

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